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1 de junho de 2015

Blimunda - porquê este nome?

Recuperando, em proveito dos nossos alunos do 12º Ano, algumas entradas das fundações deste blogue:

Muitas vezes me perguntei: porquê este nome? Recordo-me de como o encontrei, percorrendo com um dedo minucioso, linha a linha, as colunas de um vocabulário onomástico (…)

Nunca, em toda a minha vida, nestes quantos milhares de dias e horas somados, me encontrara com o nome de Blimunda, nenhuma mulher em Portugal, que eu saiba, se chama hoje assim. E tão-pouco é verificável a hipótese de tratar-se de um apelativo que em tempos tivesse merecido o favor das famílias e depois caísse em desuso: nenhuma personagem feminina da História do meu país, nenhuma heroína de romance ou figura secundária levou alguma vez tal nome, nunca estas três sílabas foram pronunciadas à beira duma pia baptismal ou inscritas nos arquivos do registo civil. Também nenhum poeta, tendo de inventar para a mulher amada um nome secreto, se atreveu a chamar-lhe Blimunda. 

Tentando, nesta ocasião, destrinçar aceitavelmente as razões finais da escolha que fiz, seria uma primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si sós a separam do seu mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo.

Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado. Blimunda não tinha outro recurso que chamar-se Blimunda. Ou talvez não seja apenas assim. Regressando ao vocabulário, e mesmo sem recair em excessos de minúcia, posso observar como abundam os nomes de pessoa extraordinários e extravagantes, que ninguém hoje quereria usar e antes só excepcionalmente, e contudo não foi a nenhum deles que escolhi: rareza e estranheza não seriam, afinal, condições suficientes. 

Que outra condição, então, que razão profunda, porventura sem relação com o sentido inteligível das palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos? Creio que sei hoje a resposta, que ela me acaba de ser apontada por esse outro misterioso caminho que terá levado Azio Corghi a denominar Blimunda uma ópera extraída de um romance que tem por título Memorial do Convento: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todas, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se na própria alma humana se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom de que não se sente merecedor, a recolhê-lo, num simples livro, à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em algumas magnificamente.


Saramago, in libreto da ópera Blimunda, Teatro Nacional de São Carlos, 1991

20 de novembro de 2013

Blimunda #18


Já está online o número 18 da revista Blimunda que pode ser descarregado aqui.

Deste número, a Fundação Saramago destaca:
  • as entrevistas a dois jovens autores em língua portuguesa, Afonso Cruz e Ondjaki; 
  • um texto de Jeronimo Pizarro sobre literatura de viagens, com passagens por Fernando Pessoa, Camilo Pessanha e Dinis Machado; 
  • os 130 anos da Biblioteca de São Lázaro, em Lisboa;
  • a recente edição portuguesa de Como Apanhar uma Estrela, de Oliver Jeffers; 
  • o centenário de Camus, através de um texto de Juan José Tamayo;
  • e, como se celebram os 91 anos de José Saramago, uma mostra das dedicatórias que outros escritores deixaram gravadas em livros que ocupam as prateleiras da biblioteca Saramago. 
Boas leituras!

21 de junho de 2013

Ainda Blimunda

Blimunda é ao mesmo tempo uma figura de vitral e uma criatura humaníssima e inesquecível. Sonhando-a e sonhando-se nela, José Saramago criou uma insólita figura da nossa ficção, uma das raras presenças míticas do imaginário contemporâneo. Excluída e predestinada para a salvação do homem, Blimunda é uma Eva sem pecado, a natural companhia e companheira da sua aventura obstinada em converter a Terra à sua vocação paradisíaca. Através dela retoma Saramago o mito de Orfeu às avessas: é Eurídice que desce aos infernos para resgatar as almas, é ela que não pode voltar-se quando investida na sua missão para que Baltasar não se sinta privado da sua força de homem, da sua vontade e do seu espírito. 

Ela conhece o mistério de Baltasar, podia apoderar-se dele se quisesse, mas o seu amor mantém-no na ilusão da sua masculina opacidade. Só se servirá desse poder para subtrair Baltasar ao seu destino de condenado, arrancando-o da fogueira para o sepultar no seu próprio coração. 

A heroína do Memorial não é uma personagem trágica, embora esteja envolta em acontecimentos que a dilaceram e a obrigam a ser a Judite do seu povo maldito. Desde sempre ela está salva, ela é feiticeira e santa indistintamente. É a testemunha e a cúmplice da tragédia dos outros, de Bartolomeu de Gusmão e de Baltasar. Do primeiro, guardará o sonho de voar tornando-se ela mesma a Voadora, do segundo a vida toda, roubando-o à morte. 

Ser silencioso, para ela vão todas as complacências do seu criador, por ela se interrompe ou distrai a evocação das cruezas, abusos, escândalos humanos e divinos de quem pode e manda nesse Portugal de sol menos ardente que as suas superstições, deixando espraiar-se o canto profundo, a torrente lírica que esse silêncio recobre.

Eduardo Lourenço, In libreto da ópera Blimunda, Teatro Nacional de São Carlos, 1991


Uma explicação:

Em 1991, o Teatro Nacional de São Carlos levava à cena «Blimunda», ópera lírica em três actos, do compositor italiano Azio Corghi, inspirada no Memorial do Convento. Como pode ler-se na Revista de Artes e Letras Lusófonas, do Instituto Camões, Saramago era o autor português mais conhecido em Itália, depois de Pessoa. Refere o artigo a existência de um grupo de intelectuais italianos que promovia encontros em torno de Saramago e da sua obra. Foi num destes encontros que o escritor conheceu o compositor Arzio Corghi, o qual lhe confessou o seu desejo de contar a história, inspirada na atmosfera do Memorial, de um Orfeu no feminino. A resposta de Saramago baptizaria a ópera: «Chamá-la-emos Blimunda». O espectáculo, que estreou no prestigiado Teatro Lírico de Milão, percorreu os principais teatros líricos da Europa.


20 de junho de 2013

Blimunda: porquê este nome?

Muitas vezes me perguntei: porquê este nome? Recordo-me de como o encontrei, percorrendo com um dedo minucioso, linha a linha, as colunas de um vocabulário onomástico (…)

Nunca, em toda a minha vida, nestes quantos milhares de dias e horas somados, me encontrara com o nome de Blimunda, nenhuma mulher em Portugal, que eu saiba, se chama hoje assim. E tão-pouco é verificável a hipótese de tratar-se de um apelativo que em tempos tivesse merecido o favor das famílias e depois caísse em desuso: nenhuma personagem feminina da História do meu país, nenhuma heroína de romance ou figura secundária levou alguma vez tal nome, nunca estas três sílabas foram pronunciadas à beira duma pia baptismal ou inscritas nos arquivos do registo civil. Também nenhum poeta, tendo de inventar para a mulher amada um nome secreto, se atreveu a chamar-lhe Blimunda. 

Tentando, nesta ocasião, destrinçar aceitavelmente as razões finais da escolha que fiz, seria uma primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si sós a separam do seu mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo.

Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado. Blimunda não tinha outro recurso que chamar-se Blimunda. Ou talvez não seja apenas assim. Regressando ao vocabulário, e mesmo sem recair em excessos de minúcia, posso observar como abundam os nomes de pessoa extraordinários e extravagantes, que ninguém hoje quereria usar e antes só excepcionalmente, e contudo não foi a nenhum deles que escolhi: rareza e estranheza não seriam, afinal, condições suficientes. 

Que outra condição, então, que razão profunda, porventura sem relação com o sentido inteligível das palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos? Creio que sei hoje a resposta, que ela me acaba de ser apontada por esse outro misterioso caminho que terá levado Azio Corghi a denominar Blimunda uma ópera extraída de um romance que tem por título Memorial do Convento: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todas, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se na própria alma humana se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom de que não se sente merecedor, a recolhê-lo, num simples livro, à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em algumas magnificamente.


Saramago, in libreto da ópera Blimunda, Teatro Nacional de São Carlos, 1991