21 de junho de 2013

Ainda Blimunda

Blimunda é ao mesmo tempo uma figura de vitral e uma criatura humaníssima e inesquecível. Sonhando-a e sonhando-se nela, José Saramago criou uma insólita figura da nossa ficção, uma das raras presenças míticas do imaginário contemporâneo. Excluída e predestinada para a salvação do homem, Blimunda é uma Eva sem pecado, a natural companhia e companheira da sua aventura obstinada em converter a Terra à sua vocação paradisíaca. Através dela retoma Saramago o mito de Orfeu às avessas: é Eurídice que desce aos infernos para resgatar as almas, é ela que não pode voltar-se quando investida na sua missão para que Baltasar não se sinta privado da sua força de homem, da sua vontade e do seu espírito. 

Ela conhece o mistério de Baltasar, podia apoderar-se dele se quisesse, mas o seu amor mantém-no na ilusão da sua masculina opacidade. Só se servirá desse poder para subtrair Baltasar ao seu destino de condenado, arrancando-o da fogueira para o sepultar no seu próprio coração. 

A heroína do Memorial não é uma personagem trágica, embora esteja envolta em acontecimentos que a dilaceram e a obrigam a ser a Judite do seu povo maldito. Desde sempre ela está salva, ela é feiticeira e santa indistintamente. É a testemunha e a cúmplice da tragédia dos outros, de Bartolomeu de Gusmão e de Baltasar. Do primeiro, guardará o sonho de voar tornando-se ela mesma a Voadora, do segundo a vida toda, roubando-o à morte. 

Ser silencioso, para ela vão todas as complacências do seu criador, por ela se interrompe ou distrai a evocação das cruezas, abusos, escândalos humanos e divinos de quem pode e manda nesse Portugal de sol menos ardente que as suas superstições, deixando espraiar-se o canto profundo, a torrente lírica que esse silêncio recobre.

Eduardo Lourenço, In libreto da ópera Blimunda, Teatro Nacional de São Carlos, 1991


Uma explicação:

Em 1991, o Teatro Nacional de São Carlos levava à cena «Blimunda», ópera lírica em três actos, do compositor italiano Azio Corghi, inspirada no Memorial do Convento. Como pode ler-se na Revista de Artes e Letras Lusófonas, do Instituto Camões, Saramago era o autor português mais conhecido em Itália, depois de Pessoa. Refere o artigo a existência de um grupo de intelectuais italianos que promovia encontros em torno de Saramago e da sua obra. Foi num destes encontros que o escritor conheceu o compositor Arzio Corghi, o qual lhe confessou o seu desejo de contar a história, inspirada na atmosfera do Memorial, de um Orfeu no feminino. A resposta de Saramago baptizaria a ópera: «Chamá-la-emos Blimunda». O espectáculo, que estreou no prestigiado Teatro Lírico de Milão, percorreu os principais teatros líricos da Europa.


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