Diz Miguel Real no jornal Público, a propósito da substituição, nos novos programas de Português, do romance Memorial do Convento, de José Saramago, pelo Ano da Morte de Ricardo Reis, do mesmo autor. Ouçamo-lo, porque muitos de nós concordamos com ele e lamentamos esta decisão.
Verdadeiramente, do ponto de vista estético, nada há a opor à introdução de O Ano da Morte de Ricardo Reis (OAMRR) no futuro programa de Português do 12.º ano em substituição de Memorial do Convento (MC). É uma escolha estética de qualidade e garante a continuidade do escritor José Saramago nos livros de leitura obrigatória do ensino secundário.
Porém, do ponto de vista pedagógico, considerando as características literárias e sociais pertinentes a MC, o nível etário e o horizonte psicológico dos alunos do 12.º ano, adolescentes entre os 16 e os 17 anos, de fraca apetência cultural, bem como a comprovadíssima óptima recepção de MC por parte de estudantes e professores, não podemos deixar de considerar a alteração uma péssima escolha.
Academicamente, OAMRR tem sido um dos romances de Saramago mais privilegiados pelos professores universitários e pelos críticos literários, expresso nos inúmeros prémios recebidos. OAMRR, desenhando tanto uma intertextualidade profundamente original com a obra de Fernando Pessoa quanto criticando a mentalidade dominante deste autor, é considerado menos ideológico que MC, mais intelectualizado, mais literato, mais esteticamente conotativo e auto-referente. Por seu lado, MC, considerada uma narrativa mais ideológica, expressão estética relevante do que Saramago entendia por história de Portugal, firmada na luta de classes e na perfídia das elites dominantes, torna-se, de facto, do ponto de vista da representação social, um romance incomodativo – que professor negaria que D. João V e a sua risível corte não poderiam ser identificados, hoje, com a elite política e administrativa de Portugal?
Deixamos à consciência do leitor 10 pontos enunciadores de uma visão de harmonização pedagógica entre o conteúdo de MC e a idade mental dos alunos, incitadora de uma visão lírica da História em tempo de profundo cepticismo, quando a Literatura pode (e deve) ser também, para as idades em apreço, motivadora de encantamento poético, de optimismo existencial, de vontade de viver em dignidade, características constitutivas de MC.
1. - MC apresenta uma diferença entre a representação da história visível (presente nos manuais da disciplina de História) e a desconstrução da mesma, evidenciando uma profunda reinterpretação e reflexão sobre a sociedade, forçando a necessidade de inquirição do aluno sobre um outro sentido para a História;2. - MC é um dos romances de Saramago em que se colocam com maior e melhor nitidez a questão da nova complexidade do estatuto do narrador, elemento de profunda originalidade da obra deste escritor;
3. - MC é atravessado, como referimos, por uma onda de lirismo como dificilmente encontra paralelo no romance português contemporâneo, lirismo profundamente harmónico com a mente adolescente dos alunos, para a qual a entrega à Arte (Scarlatti), à Ciência (Bartolomeu de Gusmão) e ao Maravilhoso (Blimunda) são alternativas credíveis na opção pelo sentido de vida;
4. - MC ostenta uma galeria de personagens maravilhosas, singularmente diferentes da normalidade social, que encanta a mentalidade adolescente, criando-lhe um optimismo existencial, uma vontade de enfrentar a vida como raramente se encontra no romance português;
5. - MC caracteriza na figura de D. João V e dos seus áulicos alguns dos males éticos de que padece a permanente elite portuguesa: a ostentação, a vaidade, o excesso, a ambição tola por imitação de modas estrangeiras, a indiferença para com o sofrimento das populações, a antiga repressão sobre a sexualidade do corpo feminino;
6. - MC denuncia, em estilo irónico, sarcástico, até jocoso, estilo que se conforma com a mentalidade adolescente, atraindo-a, o contexto sócio-político megalómano dos costumes cortesãos do século XVIII e a mentalidade interesseira da corte, obviando a evidentes paralelismos com a actualidade;7. - MC expõe uma amplidão lexical como raramente se assiste no actual romance português, cruzando vocabulário erudito com popular, histórico com presente, abrindo um novo horizonte no domínio plástico da língua aos alunos;8. - MC enfatiza a necessidade de transgressão social para que a História avance, enaltecendo a capacidade de acção comandada pelo sonho, pelo visionarismo, pela vontade de criação de um futuro diferente;9. - MC lega uma mensagem implícita, que repercute inconscientemente na mente dos alunos: a necessidade de cada um construir a sua "passarola", de possuir o seu "sonho" e a necessidade de ser diferente dos restantes para o cumprir;10. - Finalmente, por todos estes motivos, MC é um dos raros textos da literatura portuguesa que interpenetra de um modo admirável Vida e Literatura, Arte e Cidadania, Existência e Reflexão, não raro reconciliando os estudantes com o estudo da Língua e da História.
Dir-me-ão que, oposto ao presente, poder-se-ia criar um texto com 10 características relevantes de OAMRR que de igual modo o qualificariam como uma narrativa de grande qualidade literária, não inferior a MC. É verdade. Eu próprio o fiz. E, por isso, iniciei este artigo referindo que nada havia a opor à integração de OAMRR nas obras de leitura obrigatória do 12.º ano (único problema, externo ao romance, consistiria numa porventura exagerada presença de Fernando Pessoa no novo programa do 12.º ano, mas, reconheço, também este argumento é subjectivo).
Se estética e literariamente é verdade que entre ambos a qualidade é semelhante, a substituição de MC por OAMRR revelar-se-á, pedagogicamente, uma péssima escolha, uma escolha feita de professores sensíveis à literatura para professores sensíveis à literatura, mas, lamentavelmente, insensíveis à expressão pedagógica da literatura em mentes adolescentes. Porém, como desde a década de 1960 se sabe, a literatura também é recepção, e, falhada esta, um belíssimo texto, de grande profundidade estética, pode tornar-se uma leitura verdadeiramente fastidiosa no interior da sala de aula, sem consequências activas e futurantes na vida de alunos adolescentes.
Proposta: não seria pedagogicamente mais razoável permitir uma escolha livre, em alternativa, entre os dois romances? É mesmo obrigatório, para fazer brilhar OAMRR, eliminar Memorial do Convento?
MIGUEL REAL, O Público, 10/01/2014
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